por Guilherme Coelho, cineasta e escritor.
Uma angústia da vida é imaginar a morte do pai. Fantasiar, apavorado, este momento que chegará se a vida seguir seu curso natural. Torcemos pra que não seja nada abrupto ou traumático (como foi para o meu próprio pai). Mas só de entretermos a ideia, já ensaiamos a dor.
Mas ensaiar não é o forte de muitos documentaristas.
Eduardo Coutinho morreu aos 80 anos tendo se tornado um pai mítico, simbólico, para muita gente. Pessoas por todo o Brasil que ele inspirou, ajudou e cativou com seu charme de Partido Comunista Francês, e sua ranzinzez idem. Gente de todas as idades que, por afinidade, hoje se sentem órfãos.
Sou uma dessas pessoas. Durante alguns anos (insuficientemente poucos) tive a oportunidade de ter contato com Coutinho, sorvendo suas referências mil, suas obsessões e curiosidade pelo outro - e a inevitável irritação que vem com isso.
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Lembranças vivas. Um prédio no Largo do São Francisco, no Centro. Os corredores do Cecip. As paredes lotadas de cartazes de atividades dessa ONG que Coutinho fundou em 1986 com Claudius Ceccon. Ao fundo, à esquerda, seguindo o corredor, sua sala. Uma estante com livros e fitas VHS emoldura seus cabelos esvoaçantes, alvos, fartos, invejáveis. Um cinzeiro transborda de cigarros fumados pela metade. Um pequeno biombo, estranhíssimo, serve de divisória para o nada. E um pequeno monitor profissional de TV, para ver o material bruto de seus filmes, e filmes dos outros.
Esta sala foi objeto de romaria do cinema documental latino-americano nos últimos vinte anos. A todos acessível, Coutinho estava sempre disposto (e quase nunca satisfeito) em atender quem lhe telefonasse. Como muitos documentaristas, Nathaniel Leclery e eu levávamos a ele projetos e cortes de filmes em que trabalhávamos. Atenção no máximo. Anotávamos qualquer gesto.
Esses encontros eram densos, hilários, inesquecíveis - e inaudíveis. Sempre saí destas conversas com a certeza de ter perdido 60% do que ele dizia, seja por falta de referências, incompreensão ou por não ter conseguido escutar direito. E ele fazia isso de propósito. A vida pro Coutinho tinha graça se, entremeado ao real, houvesse o delírio. O sem-sentido cheio de significado. O fluxo livre; a liberdade. O não-levar-se-a-sério, levando a sério tudo que se faz e como se faz.
Uma vez na VideoFilmes, numa reunião sobre um filme que ele desenvolvia, Coutinho começa pelo começo: “em primeiro lugar...”. A mesa lotada de gente, olhos nele. Depois de falar alguma coisa, ele emenda: “e em terceiro lugar...”. Todos se olham, ninguém comenta, e no rosto do Coutinho um discreto sorriso sacana. Esse foi o grão-vizir. Imperdível. Verticalidade e diversão garantidas.
São Bernardo do Campo: a praça principal da cidade, lotada de gente. Me lembro entrando com ele embaixo da enorme bandeira do Brasil que se estendia sobre dezenas de cabeças. O amarelo luzia no contraluz. Era noite. O último comício do Lula no primeiro turno da campanha de 2002.
Coutinho fazia “Peões”, o filme sobre companheiros de Lula no ABC. João Salles filmava “Entreatos”, um diário da campanha de Lula. Neste dia, as duas equipes se encontrariam. Nathaniel e eu convencemos o Mauricio Andrade Ramos, produtor dos filmes, a nos deixar participar da filmagem levando uma câmera extra. Filmei entusiasmado por debaixo da bandeira, com o Coutinho ao meu lado. Eu tinha certeza que fazíamos história - e ele não cortou a minha onda. O plano não entrou no filme, e nunca sairá da minha cabeça. Eu queria rever esse material. Será que é possível ouvir o Coutinho vociferando direções precisas, apaixonadas e impacientes? Não sei. Me emociono.
CPI do Mensalão. Na VideoFilmes, com o João, assistíamos diariamente aos depoimentos de Roberto Jefferson e tutti quanti. Aquela gravata roxa, aquela camisa roxa. Imitávamos e debochávamos das atuações e escolhas de palavras. Ali Coutinho criou “Jogo de Cena”, esse filme inaugural.
Ascese. Coutinho de japona escura, protegendo-se do frio úmido do Jardim Botânico, seu bairro. Ele lê os jornais de final de semana, e toma um café do lado de fora da livraria (que fechou) na JJ Seabra. Quem não viu isso? Um Nelson Rodrigues tomando seu lanche na Leiteria Mineira nos anos 50.
Um dia, do outro lado da rua (num restaurante que também fechou) Matheus Nachtergaele segura em sua mão e o pede em namoro. Aos seus pés, um cachorro. Só de imaginar essa cena... Coutinho voltou ao restaurante algumas vezes.
Nosso último encontro foi um jantar a trinta passos da casa dele. Muito frio no restaurante. Achamos graça em usar duas mantas vermelhas da TAM, que eu busquei no carro, enquanto esperávamos Amora chegar para nos encantar. Os dois sempre se deram muito bem. Uma atração atroz, para mim. Um entendimento entre aqueles que tem um apetite voraz pela vida. Dividimos pratos, e combinamos que o próximo encontro seria com Dorinha, mulher e amor da vida dele.
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Voracidade. Isso foi ele. Aqueles olhos faiscantes de um rapaz de 17 anos. Aquela cabeleira. Todo um mundo ali dentro. Aqui, nós, seus filhos, por enquanto ensaiamos uma enorme saudade. E quando a tristeza chegar, teremos sempre um VHS de “Teodorico, o Imperador do Sertão.”
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