Partido do Kaos

por Jorge Mautner.

 

Quando em 1956 comecei a escrever o meu livro "Deus da Chuva e da Morte" comecei simultâneamente a criar o Partido do Kaos. Sempre achei que ao lado da palavra escrita (e no meu caso sempre profética e engajada com a História) deveria existir a sua prática, e esta era a essência do PK.

 

Eu, José Roberto Aguilar, Arthur Guimaraens, criamos e fundamos este PK e a sua sede era na Filmoteca Rainha que era um casarão na rua Eugênio de Lima, em São Paulo capital, e pertencia ao pai do Aguilar, que morava em outro casarão bem na frente da Filmoteca.

 

Nossa ideologia era um Anarquismo Pacífico baseado em: ecologia, diversidade sexual, mas consistia principalmente na proclamação messiânica e fundamental da novidade totalmente original e essencial que o Brasil havia criado com a sua própria História para o bem de todos os povos do planêta terra, nos meus textos escritos eu já proclamava a toda hora: “Do Brasil nascerá a Nova Coisa" "Do Brasil nascerá a nova era!" Isso será constantemente proclamado em todas minhas músicas, livros, entrevistas, palestras, militância política e cultural até hoje ano de 2013. E o será sempre proclamado enquanto eu estiver vivo.

 

Éramos influenciados por Piotr Kropotkin, anarquista pacifista autor de "A revolução francesa" e "A conquista do pão", mas também simultâneamente pelo "Humanitismo" filosofia apregoada por Machado de Assis através de um de seus imortais personagens.

 

Recriávamos o ambiente da revolução francesa e eu era Maximilien de Robespierre, Aguilar era Georges Danton, e o Arthur era Joseph Fouché, chefe da polícia política secreta. De acôrdo com Robespierre a revolução era: "a confiança imorredoura do povo em sua liderança incorruptível" e mais importante ainda: "A revolução são aulas universais." E ainda mais: "A Junta de Instrução Pública está acima até mesmo da Junta de Salvação Pública" Isto é: a Cultura e a Informação estão acima de todo resto do aparato do Estado até mesmo das fôrças armadas e da polícia da revolução!

 

Discussões e muitos partidários, astrólogos, poetas, garotada de vários bairros constituíam a massa flutuante e sempre crescente de nosso PK. Mesmo porque também nos dedicávamos a ações relâmpagos de propaganda partidária para recrutamentos em bairros distantes e ou próximos. Tínhamos o que era raro naquela década dos anos 50: uma multidão heterogênea de militantes, não eram apenas os de classe média como eu Arthur e Aguilar, mas também jovens da rua, alguns participavam da Escola do Vai Vai lá do Bexiga, outros eram de origem sírio-libanesa, havia alguns descendentes de chineses e japoneses, muitos se tornaram artistas mais tarde, é bom lembrar que de 1956 até 1962 muitos acontecimentos tumultuaram o PK. Um incidente foi quando pixávamos a entrada do túnel da nove de julho que ficava embaixo de um parque ao lado do Trianon com as frases "Sangue e Luz!!!!!" "James Dean voltará!!!!" "Viva a Deusa Maisa!!!!" fomos surpreendidos por uma patrulha de membros da comunidade Judaica que achavam que nós éramos neo-nazistas. Depois de longa reunião eu os convenci que eramos o contrário. Imaginem que situação paradoxal! Tudo no entanto se resolveu quando mostrei ao Rabino que comandava a patrulha anti-nazista que um dos motivos fundamentais do PK era impedir justamente a irrupção de qualquer tipo de nazismo ou neo-nazismo.

 

A sede do PK mudou para o atelier do Aguilar,e depois para uma garagem que ficava perto da praça Buenos Aires.

 

Fizemos uma caminhada no meio da rua Augusta em 1958 com archotes na mão e com cartazes anunciando o PK. Ao longo da caminhada rua Augusta abaixo íamos sendo apoiados por gritos ocasionais de moradores vindos das janelas dos prédios, e vários novos partidários vinham se agregando à nossa procissão à medida que descíamos a rua Augusta.

 

O símbolo do Kaos era uma espécie de exú alado em fundo vermelho, e KAOS queria dizer simultâneamente:

 

Kristo Ama Ondas Sonoras=Kamaradas Anarquistas Organizando-se Socialmente=Kolofé Axé Oxóssi Saravá=

 

e a quarta definição cada um ou cada uma das militantes faria descrevendo as suas idéias e desejos individuais, que para nós era a mais importante de todas.

 

Eu, Aguilar,e Arthur sabiamos por leituras intensas de Dostoiévski, Nietzsche, Machado de Assis, livros de História e filosofia, o que está bem claro em meus escritos todos desde o Deus da Chuva e da Morte, que Jesus de Nazaré é quem inventou e criou o romantismo, os direitos humanos inclusive a desobediência civil pacífica e pacificante, e através do livre arbítrio o liberalismo,e finalmente o socialismo!!!!

 

Portanto Aguilar sempre cioso desta importância de Jesus de Nazaré e os tambores do candomblé, em toda a nossa ideologia e convicção, quando sentia que o seu secretário geral Jorge Mautner e Arthur Guimaraens se tornavam por demasiado severos e radicais, para contrabalancear êste temido endurecimento de idéias e ações falava da pomba da paz de Picasso, falava da Pomba do Espírito Santo congregando as nações, e como pintor que ele já era desenhava e pintava ao lado do Exú esta ave de apaziguamento sagrado. Aguilar sempre foi o mais doce dos nazarenos do PK!

 

De 1956 até 1962 o PK mudou de enderêço, da Filmoteca Rainha deslocou-se para um apartamento duplo que ficava perto da rua Augusta, no início de 1960 mudou-se novamente para outro lugar e foi ter a sua sede numa garagem perto da Praça Buenos Aires.

 

Muitas reuniões também eram realizadas no parque Trianon, e no Ibirapuera. Aliás a inauguração do Ibirapuera em 1954 foi muito importante pois mostraram nesta ocasião as músicas e costumes de todos os Estados do Brasil, e as conversas rolavam soltas e grupos de pessoas com idéias afins ou juntando-se só por causa da solidão eram muito comuns. Esta impressionante inauguração nos influenciou ainda mais na certeza infinita da importância das culturas nacionais que entrelaçadas e também em si constituem a fabulosa Amálgama do Brasil Universal! Havia também a influência do existencialismo e isso nos garantia a total liberdade de expressão e ideológica, com grande capacidade de absorver e reinterpretar tudo a cada instante! Era uma internet em ação antes do tempo.

 

Recitais de poesia concreta, Bienal, inaugurações, filmes, peças teatrais tudo isso fazia parte de nossas peregrinações ativistas. Ainda em 1962 houve grande influxo de militantes surgidos da Faculdade de Direito pois nesta faculdade havia surgido um lider muito competente e de muita iniciativa chamado Paulo Azevedo que conseguiu em eleições da Universidade colocar o PK em terceiro lugar muito perto em votação com os dois Partidos clássicos e majoritários.

 

Íamos também ouvir os irmãos Campos, Augusto e Haroldo, e é interessante relembrar o episódio quando, em 1957, não sei como, eu e Aguilar descobrimos o telefone e o endereço do Flávio de Carvalho. Telefonamos para ele e ele foi muito gentil, marcou um encontro porque nós dissemos que queríamos mostrar alguns textos para ele. Eu e Aguilar fomos visitá-lo e eu deixei uns três contos do Deus da Chuva e da Morte, que estava sendo escrito, e dali uma semana fui encontrá-lo com Aguilar para ver o que ele havia achado. Ele me disse: eu poderia dizer muitas coisas, mas o mais impressionante é que sua literatura é indígena. Foi um dos maiores elogios que já recebi.

 

Em 1962 o PK passou para plano secundário como base de apoio do Partido Comunista pois a convite do professor Mario Schenberg eu e Aguilar entramos para o PC encarregados de função cultural específica para irradiarmos este Kaos como nova visão estética e artística por todo o Partido Comunista e toda a esquerda e centro e para quem quisesse.

 

Era resultado da desestalinização da URSS por parte de Nikita Kruschev e a idéia era a de substituir a visão do realismo stalinista, do realismo socialista e os dogmas do stalinismo, e proclamar a visão do KAOS que seria necessàriamente mitológica, quântica, e que iria muito além inclusive do expressionismo, do surrealismo, ou de qualquer arte já existente em direção da cultura do Brasil do infinito! E para isto era necessária uma nova mitologia!

 

É interessante notar que em 1958 nós também fazíamos reumiões do PK na casa do Mário Matoso que integrava o quadro dos pensadores e escritores e filósofos que se reuniam em volta do pensador Vicente Ferreira da Silva, a quem Oswald de Andrade dissera ser o maior pensador do Brasil, e que eram Paulo Bonfim, Guilherme de Almeida, Câmara Cascudo, Dora Ferreira da Silva, Miguel Reale, Gilberto de Melo Kujawski, João Quartim de Moraes.

 

Enfim aonde quer que fôsse lá estavamos irradiando o PK, em forma de arte, de discussões, e de proclamações sôbre a absoluta importância da cultura do Brasil da Amálgama=KAOS!

 

Assim quando meu livro Deus da Chuva e da Morte foi publicado em 1962 e recebeu o prêmio Jabuti, fui convidado pelo poeta Jorge da Cunha Lima para escrever uma coluna diária na Última Hora de São Paulo,intitulada: "Bilhetes do Kaos" Esta coluna acabou no dia do golpe militar de 1964, e eu estava na primeira lista dos procurados pelo Comitê de Caça aos Comunistas, pouco tempo depois o Dops apreendeu meus dois livros "Narciso em Tarde Cinza" e "Vigarista Jorge" com prefácio do Mario Shemberg que me apresentava como pensador e profeta. Foi também quando o Dops apreendeu meu primeiro compacto gravado pela RCA Vitor que apresentava duas músicas consideradas subversivas: "Radioatividade" e "Não,Não,Não!" Recentemente em reuniões e shows para a UNE voltei a ouvir estas duas canções irradiadas por um alto-falante e fiquei muito feliz!

 

Foi em São Paulo a arte moderna de 1922, foi São Paulo quem recebeu os Tropicalistas (é bom lembrar que na canção "Sampa" de Caetano Veloso ele cita meu livro ao dizer "seus deuses da chuva") e que foi São Paulo que recebeu migrações de nordestinos e fêz aflorar o grande Presidente Luis Inácio Lula da Silva, e que foi no estado de São Paulo que nasceu José Bonifácio de Andrada e Silva e onde se proclamou a nossa Independência, e que foi inspirada e iniciada pela Conspiração dos poetas de Minas Gerais!!!!

 

Desde o início no PK, era obrigação de todos os militantes e simpatizantes lerem jornais todos os dias e discutindo as notícias, a influência da revolução cubana foi importantíssima em nossos corações, idéias e ações culturais. O comandante Fidel Castro e o comandante Ernesto Che Guevara estavam no coração de todos os brasileiros. É bom lembrar que Jânio Quadros, eleito pela UDN, condecorou o comandante Ernesto Che Guevara com a Estrela do Cruzeiro do Sul, a maior comenda do Brasil. Contatos com a UEE, com a UBES e com a UNE, com o Teatro Arena com Guarnieri à sua frente em seu constante ativismo político-cultural, assim como o Teatro Oficina de José Celso Martinez Corrêa. Importantes também os contatos com os trotskistas, principalmente o meu grande amigo Ottaviano de Fiore e sua esposa Elizabeth de Fiore, e o encontro com os anarquistas espanhóis que, para nossa surpresa, nos levaram para um piquenique fleugmático e totalmente pacifista. Lembrar também a importância da Teologia da Libertação e a figura sublime de Jesus de Nazaré, ao lado do ateísmo. Tivemos contatos também com pontos em comum e outros discordantes com o poeta Roberto Piva e o poeta Cláudio Willer, e também com o poeta Roberto Bicelli, sem esquecer Lindolfo Bell. Não posso deixar de citar as conversas com Nelson Coelho, escritor zen-budista, Paulo Bonfim e sua saga dos bandeirantes e os seus outros livros de poemas profundamente filosóficos. A presença de Agrippino de Paula no PK, do pintor Peticov e também a presença, a partir de 62, de Jô Soares. Essencial lembrar também os nossos contatos com o genial Solano Trindade, poeta e líder do movimento negro nascente com o também genial Abdias do Nascimento. Imprescindíveis também a influência de Krishnamurti, e a de Darcy Ribeiro, Ligia Fagundes Telles, Rogério Sganzerla (ainda jornalista antes de ser cineasta) e Dulce Maia.

 

Não posso ainda me esquecer da influência tremenda em nossas idéias do feminismo, da importância das minorias que na verdade são maiorias. Viva o imenso coração do povo brasileiro!!!!

 

(imagem: The most beautiful side of the tea cup, por José Roberto Aguilar)

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