(Texto lido por Gilberto Gil na cerimônia de entrega da Grã-Cruz da Ciência e da Cultura da Áustria para Jorge Mautner, em novembro de 2003, no Consulado da Áustria no Rio de Janeiro.)
Se a ciência e a arte, se fosse possível que elas pudessem representar a complexidade no sentido amplo da vida, a presença do ser humano nela, seria, ainda assim, ainda que essa capacidade da ciência e da arte fosse possível, nessa abrangência inteira, ainda assim seria difícil que elas pudessem, a ciência e a arte, representar a complexidade que se reúne nesse homem.
Eu diria que, se possível fosse que essa ciência e essa arte pudessem estabelecer uma identificação de código genético confiável, ainda assim, num exame qualquer que pudéssemos submeter a ela, fazer do código genético desse homem, o resultado que viesse ainda não seria confiável. Se fosse possível que esse exame do código genético, possível de ser realizado pela ciência e pela arte, viesse a nos trazer um resultado qualquer, ainda assim seria difícil poder confiavelmente admitir que esse resultado representaria o perfil, ou a fotografia, ou o retrato, ou o registro de um ser deste planeta.
E por aí vai, e por aí iria qualquer das considerações que pudéssemos vir a fazer sobre esse ser, com esse nome provisório, sempre provisório, eternamente provisório, de Jorge Mautner.
Eu diria apenas, para trazer essas especulações que agora faço para um nível mais acessível, atingível, controlável por nossos sentidos, por nossas capacidades variáveis de apreensão, eu diria que esta plêiade humana aqui presente – e não preciso me referir a ela, quem estivesse na minha posição agora teria condições de perceber o que quero dizer –, esta plêiade humana aqui presente, as várias raças, as várias culturas, as várias idades, as várias condições humanas, as várias origens, talvez só este conjunto pudesse, se quiséssemos reduzir, adotar esse reducionismo já absolutamente incompatível com a figura transumana e transuniversal de Jorge Mautner, só talvez este conjunto aqui pudesse, naquela referência que fiz no início, do código genético... só talvez se as artes e as ciências avançadas de um mundo imaginário... talvez só aí fosse possível fazer o código genético, estruturar em uma estrutura única, uma condensação, uma compilação dos códigos genéticos de todos vocês, de todos nós, talvez só aí – e admitindo um reducionismo, um reles reducionismo, um reducionismo de segunda ou terceira ordem –, só aí talvez fosse possível ter, num resultado que apresentasse essas ciências e artes desse código genético, só aí talvez esse código genético desta sala pudesse representar o código genético que Jorge Mautner apresenta...
E por aí vai, e por aí iria. Tenho a impressão de que já me fiz compreender. Ainda que, em se tratando dele, dessa figura, qualquer veleidade de explicar o que quer que seja já seja um absurdo.
Então eu não queria me estender mais. A noite é dele. É do buraco negro, da estrela mais forte, do oceano mais profundo, da flor mais bela, e todas as metáforas que reunidas no universo íntegro e completo da poesia não poderiam representar.
Quando ele me noticiou e disse que gostaria que eu estivesse presente nesta homenagem que lhe seria prestada, pediu-me que falasse algumas coisas. E disse assim: “Você tem que falar.” E eu disse: “Falarei.” E, como vocês puderam ouvir, falei do não-falar. Pois essa é a dimensão em que poderíamos incluí-lo: admitir que ele estivesse posto nessa dimensão, nessa dimensão dos contrários, de todos os contrários absolutos, reunidos em todas as direções. Essa seria a única maneira de falar sobre Jorge Mautner. E eu deixei exatamente para o final essas duas palavras, para que elas condensem todo o não poder falar dos nossos falares sobre ele, aqui nesta noite: Jorge Mautner!
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