(Prefácio de Caetano Veloso para o livro O Filho do Holocausto, de Jorge Mautner)
A biografia de Jorge Mautner é uma instância fundamental da literatura e da arte que vem se apresentando ao mundo sob sua assinatura. Não apenas elementos autobiográficos surgem a cada linha de seus romances, contos, artigos, crônicas e canções: o que sabemos sobre sua vida, pelo acompanhamento que viemos dando a sua pessoa pública desde o lançamento de Deus da chuva e da morte, tem sido determinante do modo como apreciamos sua obra. Esse judeu paulista nascido no Rio - mas que não é judeu nem paulista, uma vez que sua mãe era gentia, e sua formação pessoal básica é carioca — nos tem feito pensar sobre o que é ser brasileiro, na medida mesma em que sempre pareceu um alienígena na nossa cena cultural e social. Agora, ele nos apresenta um relato cândido de sua formação. E, diante do texto, experimentamos o conforto de ver desvelados aspectos que adivinhávamos — mas muitas vezes mesclado à surpresa de vê-los revelarem-se em tom que lhes dá outro significado que não o que já tínhamos decifrado.
O que reencontramos aqui é um discurso não diferente do discurso hiperbólico e ostensivamente redundante de suas ficções: aquele que ecoa os profetas de Israel filtrados pela cultura pop americana -- ou que talvez seja a visão da cultura pop americana (cujo impulso de impor-se aconteceu exatamente quando Jorge crescia) por um espírito criado no ambiente profético do Povo Eleito. Já sabíamos que, apesar da voz grandiosa, as redundâncias, que expõem o acinte de não revisar, estão ali testificando um grande ceticismo. Mas tudo isso é tanto mais fascinante à medida que se prova ser o ceticismo oriundo do lado judeu, enquanto a desmesura mítica vem do lado gentio. Assim, o acerto de contas que toda biografia implica, aqui vem trazer um Rio de candomblé e Getúlio Vargas mitológicos, idealizados, fundido ao mais radical espírito de desconfiança, ao ceticismo mais relativizador de projetos políticos e ilusões religiosas. E as tardes cinzentas de São Paulo se transformam em fantasmagorias românticas, que são, embaladas pela música vulgar, símbolo e recusa desse ceticismo.
Eu próprio tenho dito e escrito que o Brasil precisa tornar se o mais diferente de si mesmo para poder encontrar-se. Mautner me parece personificar essa equação. Sua ligação direta com os temas mundiais, fugindo do Brasil fechado em si mesmo que todos cultivamos; sua assintonia com a bossa nova e com a poesia concreta (neste caso mesmo ridicularizando um suposto entusiasmo demonstrado por seus inventores relativamente a uma bula de remédio, quando, a ser verídica a anedota, nada, a não ser um preconceito romântico muito ingênuo, justificaria a desqualificação do interesse literário encontrável em bulas de remédio); seu amor a sério pelo rock, precoce, mundialmente pioneiro, pré-Beatles; tudo faz dele o antibrasileiro. E no entanto o resultado final é sempre um samba-exaltação, nascido não apenas da gratidão de vítima salva pela generosidade natural de um país-continente à deriva, mas da capacidade profunda de ver os grandes bens ocultos em nossas misérias.
Jorge Mautner, filho do Holocausto, filho do Brasil.
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